O USO DA PALAVRA IRMÃO E PRIMO NO NOVO TESTAMENTO:
Carecemos de muita informação sobre o uso das palavras “primos” e “irmãos” no Novo Testamento.
Vamos a um detalhado estudo sobre as línguas da Bíblia:
A Bíblia começou a ser escrita mais de 1000 anos antes de Cristo na língua hebraica, pois esta era a língua falada na Palestina até o povo de Deus sofrer o cativeiro de cinqüenta anos na Babilônia em 586 a.C.
Após o cativeiro, parte do povo que voltou para a sua terra começou a falar o aramaico; a outra parte de judeus imigrou para o Egito onde começou a falar o grego.
Mas a Bíblia continuou a ser lida e copiada em hebraico, sua língua original.
Por volta do ano 300 antes de Cristo, o grego havia se tornado a nova língua do comércio e invadiu o mundo daquele tempo.
Então, por volta do ano 250 antes de Cristo, os judeus que estavam no Egito desde o fim do cativeiro já não sabiam mais o hebraico e nem o aramaico, tendo dificuldades para ler a Sagrada Escritura.
Para resolver a questão, um grupo de setenta e dois sábios judeus (seis de cada tribo de Israel) se reuniu em Alexandria (Egito) e pegaram todo o Texto Sagrado escrito na esquecida língua hebraica (com partes em aramaico) e o traduziram para o grego, formando assim a chamada Bíblia dos Setenta ou Septuaginta.
Esta tradução grega tornou-se o referencial dos Apóstolos e dos primeiros cristãos na confecção do Novo Testamento que também foi escrito em grego.
Entendido isso, vamos agora saber o que houve com a palavra irmão ao ser traduzida do hebraico (língua original) para o grego (língua agora mais usada).
Na língua hebraica a palavra irmão se escreve ’āh e significa filhos dos mesmos pais, mas poderia significar também outros parentes, porque não existe variedade de palavras hebraicas para designar a parentela.
Quando se traduziu a Sagrada Escritura para o grego, o termo grego usado para traduzir ’āh (irmão ou parente em hebraico) foi αδέλφος (lê-se adelphós), que é irmão em grego e significa exatamente: “nascidos do mesmo útero”.
Com esta tradução, αδέλφος recebeu também um significado mais amplo do que apenas nascidos do mesmo útero, pois αδέλφος passou na tradução a ser’āh (irmão ou parente).
Precisamos agora investigar até onde os semitas utilizavam αδέλφος para podermos estabelecer o grau de parentesco desses αδέλφοι (irmãos – lê-se adelphoi) com Jesus.
No grego se designa com essa palavra especificamente o irmão carnal, ou pelo menos o meio irmão.
Mas existem exceções como um antigo documento chamado Marco Aurélio 1,14,1; assim como numerosos textos de papiros egípcios, onde, da mesma forma como na tradução grega do Antigo Testamento, os filhos dos irmãos (sobrinhos) ou mesmo primos são chamados de αδέλφος, ou seja, irmão.
Veja o exemplo de I Crônicas 23,21-22:
“Filhos de Mooli: Eleazar e Cis. Eleazar morreu sem ter filhos, mas somente filhas, que se casaram com os filhos de Cis, seus αδέλφοι (irmãos)”,
o texto deveria ser:
“…se casaram com os filhos de Cis, seus primos”.
Leia também Gn 13,8; Gn 31,22-23; Ex 2,11; Jz 9, 1-3; I Cr 15,1-5; I Cr 23,21-22; II Cr 36,10.
Apesar dos autores do Novo Testamento terem tido a possibilidade de usar termos específicos existentes no grego para designar a parentela como ανεψιός (primo, lê-se anepsiós) ou συγγενης (parente, lê-se sungenees), os utilizaram muito pouco.
Isso por dois motivos:
eles tiveram como referência a tradução grega do Antigo Testamento e nesta tradução αδέλφος engloba toda a parentela;
e também tendo eles tido a pobre língua hebraica como língua original, não se importavam muito com a exatidão dos termos da língua grega.
Isso notamos, por exemplo, quando São Paulo escreve em grego:
“Em seguida, o Senhor apareceu a mais de quinhentos αδέλφοι (irmãos) de uma vez” (1ª Cor 15,6).
Com certeza São Paulo não dizia que estes mais de quinhentos irmãos eram nascidos do mesmo útero, mas sim usava αδέλφοι na sua amplitude maior.
Para comparação temos o fato de que a palavra portuguesa saudade não tem tradução em muitas línguas.
Esta palavra quer dizer exatamente lembrança triste do que ou de quem está distante.
Então vamos ao exemplo: como o inglês é uma das línguas onde não existe o termo exato para designar saudade, se usam termos com outros significados, mas que ganham uma amplitude para englobar saudade.
Então se alguém escrevendo em inglês quiser escrever saudade, esta pessoa utilizará (entre outras) a palavra longing que primeiramente quer dizer: ânsia/desejo intenso de algo inacessível no momento.
Ao traduzir esse texto para o português onde se procure ser fiel ao original (como foi o caso da Septuaginta) o tradutor traduzirá longing com sua designação inicial, ou seja, ânsia/desejo, apesar de existir na língua portuguesa o termo específico para designar saudade.
Deste modo, a tradução ânsia/desejo terá um alargamento onde se englobará também saudade, do mesmo modo como αδέλφος passou a ter outros significados na tradução grega e, daí, no costume semítico.
Assim percebemos que nem sempre αδέλφος quer dizer filhos do mesmo útero como foi proposto.
A Sagrada Família é apenas Jesus, Maria e José, como nos descreve São Lucas na ida ao Templo de Jerusalém e São João, em seu Evangelho, ao dizer que Jesus entregou sua Mãe aos cuidados do discípulo amado e não de um outro possível filho carnal como seria obrigação dele pela lei de Moisés.
Dados objetivos, mencionando as passagens bíblicas onde
aparece a expressão “irmãos de
Jesus”:
1. Mc 3,20-21.31-35: a mãe de Jesus, os seus irmãos
e irmãs vêm encontrar Jesus, pois crêem que tenha
enlouquecido. Jesus, ao invés, redefine o conceito de
família.
2. Mc 6,3-5: as pessoas se perguntam sobre a origem
do comportamento de Jesus (de onde?), invés os
seus conterrâneos sabem bem de onde ele vem:
conhecem os seus irmãos e sua mãe por nome e as
irmãs estão entre eles.
3. Jo 2,12, depois das bodas de Caná, diz que Jesus
se encontra em Cafarnaum, com sua mãe, seus
irmãos e seus discípulos. Em Jo 7,3.5.10 se sublinha
a distância que existe entre Jesus e seus irmãos: não
são do mesmo mundo.
4. Nos Atos e em Paulo os irmãos de Jesus aparecem
como membros importantes da primeira comunidade
cristã. Atos 1,14 conta que entre os membros da
comunidade de Jerusalém estavam a mãe e os irmãos
de Jesus. Em 1Cor 9,5 os irmãos do Senhor são
colocados entre os apóstolos e Cefas, como líderes da
comunidade cristã. Em Gálatas 1,19 é lembrada a
visita de Paulo a Jerusalém, onde, além de Cefas,
encontrou Tiago, o irmão do Senhor.
É importante sublinhar, repetindo, que o termo grego
usado nessas passagens é ‘adelfós’, que literalmente
significa ‘irmão’.
Todavia esse dado não basta para abaixar a poeira.
Existe, de fato, diversas explicações sobre
expressão.
Elencamos algumas:
1. Primos por parte de pai
Essa tese se baseia no trabalho de Eusébio de
Cesaréia. De acordo com esse padre da igreja, os
irmãos de Jesus podem ser identificados com os filhos
de Alfeu-Cleofas, tio paterno de Jesus, e sua esposa,
Maria de Cleófas.
Portanto ‘adelfós’ significaria primo de primeiro
grau.
Os defensores de tal tese
dizem que não se trata de argumentos a posteriori,
que tentam
defender o dogma da igreja católica, mas
conseqüência da aplicação do método
histórico-crítico.
O defensor clássico dessa tese é Jerônimo, autor da
Vulgata, que, respondendo a Elvídio, que dizia que os
‘irmãos’ eram ‘irmãos carnais’, diz:
“Tiago, chamado
irmão do Senhor, chamado o Justo, alguns dizem que
era filho de José com uma outra mulher, mas creio ser
filho de Maria, irmã da mãe do Nosso Senhor, de
quem João fala no seu Evangelho”.
Em linhas gerais
se pode dizer que também Lutero defendia essa tese.
Lemos, em Sermão sobre João: “Cristo foi o único
filho de Maria, e a virgem Maria não teve outros filhos
além dele. ‘Irmãos’ significa na realidade ‘primos’, pois
as Sagradas Estrituras e os judeus chamam sempre
irmãos os primos... Cristo, o nosso salvador, foi o
fruto real e natural do seio virgem de Maria... Isso
aconteceu sem a cooperação do homem e Maria
continuou virgem também depois”.
Também Calvino escreve:
“Segundo o costume judeu, chamam-se
irmãos todos os parentes. Contudo Elvídio foi
ignorante quando disse que Maria teve diversos filhos
por que em algum lugar se menciona ‘irmãos de
Cristo’” (Comentário a Mateus, 13.55).
Os críticos dessa teoria são sobretudo os
protestantes que, diferente de Lutero e Calvino,
entendem ‘adelfós’ como ‘irmão’ no sentido carnal e
não ‘primo’.
A tradição da Igreja sempre viu Santa Maria de Cleofas, como irma de Nossa Senhora, Tia de Jesus e Mãe dos irmãos do Senhor: Tiago, José, Simão e Judas.
2. Primos por parte de pai e de mãe
É uma tese do exegeta alemão Josef Blinzler.
Ele diz que Tiago e José são filhos da irmã da
mãe de Maria,
que também se chama Maria; Invés Simão e Judas
são filhos de Cleofas, irmão de José esposo de
Maria, e de Maria de Cleofas. Ele baseia sua teoria
no texto
de João 19,25, que distingue a irmã de Maria de Maria
de Cleofas. Outros defensores dessa tese são Rinaldo
Fabris e Vittorio Messori. Mas a tese não é muito
clara, visto que não é assim tão fácil distinguir duas
Marias em João 19,25.
3. Irmãos carnais
É a tese que nasceu com o bispo ariano de Milão,
Elvídio, no IV século. Ele defendeu a superioridade do
casamento em relação ao voto de castidade. Para
sustentar a sua teoria disse que também Maria tinha
vivido com José e tinha tido outros filhos depois do
nascimento de Jesus.
Essa posição é sustentada pelos protestantes. Essa
visão é contestada pelos católicos, cristãos ortodoxos
e também pelos muçulmanos, que seguem o que é
escrito no Corão.
4. Irmãos adquiridos
É a teoria do evangelho apócrito de Tiago, segundo o
qual José, quando se casou com Maria, tinha
outros filhos, de um casamento anterior.
Outros escritores
clássicos defendem essa tese: Clemente de
Alexandria, Orígenes, Eusébio, Hilário de Poitiers,
Ambrosiaster, Gregório de Nisa, Epifânio, Ambrósio,
Cirilo de Alexandria. Hoje sobretudo os ortodoxos
concordam com essa visão, mas também o adventista
Angel Manuel Rodríguez.
5. Colaboradores
A escola exegética de Madri defende que os atuais
textos gregos do Novo Testamento se baseiam em
textos em aramaico e analisando os textos em
questão dizem que ‘irmãos de Jesus’ indica na
verdade aquele que colaboravam, ou seja, os
apóstolos e outros discípulos que o seguiam. Do
mesmo modo que a ‘irmã da mãe de Jesus’ seria
também ela uma mulher que acompanhava Maria.
Para organizar a nossa apresentação, digamos que
existem duas teorias: uma que diz que ‘adelfós’
significa irmão carnal e outra que retém que seja
primo.
Argumentos favoráveis a “irmãos”
• Etimologicamente adelfós (plural = adelfoi) significa
co-uterino, ou seja, filho da mesma mãe.
• Mt 1,24;24 diz: “José (...) recebeu em casa sua
mulher. Mas não a conheceu até o dia em que ela deu
à luz um filho.” ‘Conhecer’, na Bíblia, significa ter
relações sexuais. O texto bíblico em si não exclui que
depois do nascimento de Jesus Maria tenha tido
outros filhos.
• Lucas 2,7 diz que Maria deu à luz o seu filho
primogênito. Se Maria não tivesse tido outros filhos
Lucas poderia ter usado ‘unigênito’.
• Se os irmãos fossem primos a Bíblia teria usada a
palavra grega ‘anepsios’ e não ‘adelfos’.
• Mc 3,21 e Jo 7,5 afirmam que os irmãos não tinham
fé em Jesus. Desse modo não podem serem
identificados com os apóstolos ou colaboradores do
Senhor.
Argumentos favoráveis a “primos”
• A palavra adelfós tem um campo semântico que não
se limita à ligação com a mãe, mas pode normalmente
significar também irmão só por parte de pai. Além
disso o grego do novo testamento é uma língua
influenciada pelo pensamento semítico dos seus
autores. Quando o escritor escreve em grego está, na
verdade, pensando em hebraico-aramaico. Portanto
quando ele usa ‘adelfós’ está efetivamente usando o
vocábulo hebraico-aramaico ‘ah’. Esse termo, na sua
língua, não significa só irmão, mas todo grau de
afetividade ou parentesco (Conferir Gn 13,8; 29,15;
Lv 10,4).
• No grego existe a palavra ‘anepsioi’ para primos,
mas no grego bíblico, que é diferente daquele
clássico, esse vocábulo indica um parentesco não
próximo, no sentido existencial. Portanto os ‘primos’
de Jesus, visto que eram em contato com ele, não
podiam ser chamados ‘anepsioi’.
• Os ‘irmãos’ de Jesus não são nunca colocados em
relação com Maria e José; só Jesus é filho de Maria e
filho de José.
• O fato que Jesus é chamado primogênito e não
unigênito não é importante. De fato na sociedade
hebraica o primeiro filho tem um valor em si e é
sempre o primogênito, mesmo sendo filho único.
Ilustra essa tese a descoberta de uma inscrição em
um túmulo em Tell el-Jehudi que diz: “nas dores do
parto do meu primogênito a sorte me conduziu ao fim
da vida”. É claro que nesse caso o primogênito é
também unigênito.
Considerações finais
O problema dos ‘irmãos de Jesus’ é sobretudo uma
questão dogmática. É muito mais simples acreditar
que Jesus tenha tido irmãos. Porém há outros indícios
que precisam ser considerados. A palavra ‘primo’
(anèpsios) aparece uma única vez no Novo
Testamento (Colossenses 4,10 – A tradução de
Almeida nesse caso usa, de modo errado, ‘sobrinho’).
Porém em outro livro em grego, Tobias (que não
aparece na Bíblia Hebraica e, por isso, nas
protestantes, mas cujo texto hebraico foi encontrado
também em Qumran), os termos ‘anèpsios’ e ‘adelfós’
são usados sem distinção para significar primo ou
parente em geral (cf. Tobias 7,1-4 e confrontar com
Tobias 6,1). De fato alguns manuscritos em 7,4 usam
anèpsios, enquanto outros usam ‘adelfós’. Além do
mais, o contexto bíblico nos obriga a recordar que o
conceito de família naquele tempo era muito mais
largo do que o atual: fazia parte da família, como
irmãos (ah em hebraico), todos os que habitava a
casa (bet em hebraico), o clã familiar. Outro
aspecto é a tradição. Não é decisivo, mas acreditamos
seja importante. Já no segundo século não havia
dúvidas sobre a relação dos “irmãos” com Jesus: não
eram filhos de Maria. Esse conceito continuou vigente
inclusive no tempo da Reforma, com Lutero e Calvino.
Somente nos últimos tempos ele voltou a ser
questionado.
Concluímos dizendo que a tradição cristã afirma
que aqueles que a bíblia chama ‘irmãos de
Jesus’ são na verdade seus parentes.
E, do nosso ponto de vista, a Bíblia não oferece
argumentos para afirmar categoricamente que Jesus
teve irmãos, nem para combater a doutrina que Jesus
e filho único de Maria, doutrina largamente aceita no
inicio do Cristianismo e, por isso mesmo, a que mais
se aproxima da verdade plena, com base bíblica e
histórica.
FONTES:
Publicado em 5 de fevereiro de 2012
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Parabéns. Muito bom artigo!
ResponderExcluirMuito bom
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